Grande derrotada da Guerra Fria, a Rússia conservou, porém, seu arsenal nuclear e potencial militar e econômico. Será a principal questionadora da nova ordem mundial, conforme a equação do norte-americano Morgenthau. Por isso, a guerra na Geórgia não reproduz o passado: ela anuncia o futuro
Os fatos mais recentes e importantes são conhecidos. Em abril, a última reunião de cúpula da OTAN, em Bucareste, reconheceu a aspiração da Geórgia a participar da aliança militar liderada pelos EUA, apesar da resistência alemã e da oposição explícita do governo russo. E em 11 de julho, aviões da Força Aérea Russa sobrevoaram o território da Ossitéia do Sul, na véspera da visita à Geórgia da secretária de Estado norte-americana, Condollezza Rice, para inaugurar a operação “Resposta Imediata 2008”, um exercício militar conjunto do exército norte-americano com as tropas da Geórgia, Ucrânia, Armênia e Azerbaijão, realizado na base aérea de Vaziani, que havia pertencido à Força Aérea Russa até 2001.
Logo em seguida, em 8 de agosto, as forças armadas da Geórgia atacaram a província da Ossétia do Sul e conquistaram sua capital, Tskhinvali. Não está claro por que a Geórgia atacou a Ossétia do Sul, exatamente no dia da inauguração das Olimpíadas de Pequim. Mas não há dúvidas de que a grande surpresa dos governos envolvidos nesta história foi a rapidez, extensão e eficácia da resposta russa, que em poucas horas cercou, dividiu e atacou — por terra, mar e ar — o território da Geórgia, numa demonstração contundente de decisão política, organização militar e poder de conquista. Tudo feito com tamanha rapidez e agilidade que deixou os governos “ocidentais” perplexos, divididos e impotentes, obrigados a acompanhar os desdobramentos da ofensiva russa hora a hora, através de fatos consumados, sem conseguir saber ou poder antecipar o seu objetivo final.
Logo depois da Segunda Guerra Mundial, Hans Morgenthau, pai da teoria política internacional norte-americana, formulou uma tese muito simples e clássica sobre a origem das guerras. Segundo ele, “a permanência do status de subordinação dos países derrotados numa guerra pode facilmente produzir a vontade destes países desfazerem a derrota e jogarem por terra o novo status quo internacional criado pelos vitoriosos, retomando seu antigo lugar na hierarquia do poder mundial. Ou seja, a política imperialista dos países vitoriosos tende a provocar uma política imperialista igual e contrária da parte dos derrotados. E se o derrotado não tiver sido arruinado para sempre, ele quererá retomar os territórios que perdeu, e se possível, ganhar ainda mais do que perdeu, na última guerra”.
Em 1991, a vitória não foi apenas dos EUA, mas também da Alemanha e China. À Rússia, restou a condição de potencia derrotada — que se apressa em reverter o novo status quo internacional e retomar seu lugar na hierarquia do poder mundial
Em 1991, depois do fim da Guerra Fria, não houve um acordo de paz que estabelecesse as perdas da União Soviética e que definisse claramente as regras da nova ordem mundial imposta pelos vitoriosos — como havia acontecido no fim da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais. De fato, a URSS não foi atacada, seu exército não foi destruído e seus governantes não foram punidos, mas durante toda a década de 90 os EUA e a UE apoiaram a autonomia dos países da antiga zona de influência soviética e promoveram ativamente o desmembramento do território russo. Começando pela Letônia, Estônia e Lituânia, e seguindo pela Ucrânia, a Bielorússia, os Bálcãs, o Cáucaso e os países da Ásia Central. Neste período, os EUA também lideraram a expansão da OTAN, na direção do leste, contra a opinião de alguns países europeus. E, mais recentemente, os EUA e a UE apoiaram a independência do Kosovo, aceleraram a instalação do seu “escudo anti-mísseis”, na Europa Central e estão armando e treinando as forças armadas da Ucrânia, da Geórgia e dos países da Ásia Central, sem levar em conta que a maior parte destes países pertenceu ao território russo, durante os últimos três séculos.
Em 1890, o Império Russo, construído no século 18 por Pedro, o Grande, e Catarina II, tinha 22,4 milhões de quilômetros quadrados e 130 milhões de habitantes. Era o segundo maior império contíguo da história da humanidade e uma da cinco maiores potencias da Europa. No século 20, durante o período soviético, o território russo manteve-se do mesmo tamanho. A população chegou a 300 milhões de habitantes e a Rússia transformou-se na segunda maior potência militar e econômica do mundo. Pois bem: hoje, a Rússia tem 17,1 milhões de quilômetros quadrados e apenas 152 milhões de habitantes. Ou seja, em apenas uma década — a de 1990 —, perdeu cerca de 5 milhões de quilômetros quadrados e 140 milhões de habitantes,
A maior parte dos analistas internacionais que se dedicam a prever o futuro se esquecem — em geral — de que os grandes vitoriosos de 1991 não foram apenas os EUA, mas também a Alemanha e a China. Foi uma virada histórica onde só houve um grande derrotado, a URSS, cuja destruição trouxe de volta ao cenário internacional uma Rússia mutilada e ressentida. Alemanha e China ainda tomarão muitos anos para “digerir” os novos territórios e zonas de influência que conquistaram, nas últimas décadas, na Europa Central e no Sudeste Asiático. Enquanto isto, o desaparecimento da União Soviética colocou a Rússia na condição de uma potencia derrotada, que perdeu um quarto do seu território, e metade de sua população, mas ainda mantém de pé seu armamento atômico e seu potencial militar e econômico, junto com uma decisão cada vez explícita “de desfazer a derrota, e jogar por terra o novo status quo internacional criado pelos vitoriosos (em 1991), retomando seu lugar na hierarquia do poder mundial”.
Por isto, neste início do século 21, a Rússia é um desafio e uma incógnita, para os dirigentes de Bruxelas e de Washington e para os comandantes militares da OTAN. Quando na verdade, o mistério não é tão grande, e se Hans Morghentau estiver com a razão, trata-se de um segredo de Polichinelo. A Rússia foi a grande perdedora da década de 90, e ao contrário do que diz o senso comum, será a grande questionadora da nova ordem mundial, qualquer que ela seja. Até que lhe devolvam — ou ela retome — o seu velho território, conquistado por Pedro, o Grande, e Catarina II. Por isso, a atual guerra na Geórgia não é uma guerra antiga. Pelo contrário, é um anúncio do futuro.A guerra nunca é deflagra subitamente: a sua extensão não é obra de um instante
Autor:Sandro Leonel
Bibliografia
Da Guerra; Clausewitz Carl Von
Era dos Extremos; Hobsbawn,Eric
sexta-feira, 19 de setembro de 2008
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